Um coma de três décadas

 Um coma de três décadas

Uma das notícias mais badaladas em Espanha, durante o mês de novembro, foi a saga de Manel Monteagudo, um galego que revelou ter estado num coma profundo, entre 1979 e 2014, 35 anos no total. Embora esta reivindicação não fosse nova (já tinha circulado pelos meios locais em 2019), os media espanhóis decidiram dar-lhe destaque e Monteagudo não se fez rogado. Foi um corrupio de entrevistas onde comentou a experiência, desde a queda num barco, na costa do Iraque, que lhe provocou o coma, até ao momento em que acordou e se viu ao espelho. “Esse não sou eu, eu sou jovem de 22 anos e esse é um velho!”, gritou. Ou, claro, a sua surpresa ao descobrir como funcionava um telemóvel ou a magia da Internet.

Tudo muito bonito e bom para ocupar espaços noticiosos, mas a história de Manel Monteagudo era ainda mais milagrosa: o homem não só esteve em coma 35 anos, como, durante esse período, conseguiu casar-se, ter duas filhas e escrever vários livros! Nada mal para uma vida passada em coma e, no fundo, uma história fácil de desmascarar, se a arte de verificar factos, bem como os recursos associados, ainda existissem nos media modernos. Tão fácil que nem os relatos originais falavam de um coma tão longo e, claro, não havia nenhum registo médico do incidente.

Confrontado com a realidade, Manel foi ajustando a história. Como foi possível ter duas filhas? “Não comento, por respeito à minha mulher”. Quanto tempo foi de coma? Afinal, não foi um estado vegetativo, foram “14 a 16 desmaios ao dia”. Com jornalistas à porta de casa a questionar a história, estalou o verniz e ele até tentou agredir um câmara. Pouco depois, saiu o desmentido e a admissão de que devia ter acabado com a história antes que a coisa “se saliera de madre” (os espanhóis têm expressões fantásticas). Um exemplo de como não fazer jornalismo, embora a história continue a ser apoiada pela editora dos seus livros, que começou tudo isto com uma nota de imprensa sobre Monteagudo.

O escritor galego Manel Monteagudo. (EFE/Salvador Sas)

No entanto, a história de Manel Monteagudo inspirou-me e comecei a imaginar como seria entrar em coma, em Portugal, há 35 anos, e acordar no final de 2021. O coma teria ocorrido em 1986, um ano especial tanto para nós como para Espanha, com a entrada na União Europeia (UE), então Comunidade Económica Europeia. Imagino que eram tempos otimistas, a entrada na Europa e todos os benefícios que vieram com isso. Hoje, eu acordaria e veria um país à espera de uma “bazuca” de fundos europeus — com muito menos otimismo.

Além da entrada na UE, a grande notícia do ano foi a das presidenciais. Mário Soares contra Freitas do Amaral. Direita contra esquerdas, com vários partidos “obrigados” a alinhar-se, na segunda volta, com o candidato socialista, para evitar que o primeiro Presidente da República civil (pós-25 de Abril) viesse do outro lado do espectro político. Uma aliança de esquerdas para possibilitar uma solução governativa do PS? Situação muito similar à que vivemos nos governos dos últimos anos e que parece ter acabado no último Orçamento de Estado. Um 1986 dominado por 1985, ano em que o panorama político mudou com o fim do Bloco Central. Cavaco Silva chega ao poder, mesmo a tempo de levar Portugal à Europa, concretizando um plano de Mário Soares, que assinou o acordo e, depois, foi a caminho da presidência da República. Hoje, alguns defendem o regresso do Bloco Central como a melhor solução para resolver o impasse legislativo que vivemos (e que se vivia em 1986, pois, o primeiro governo de Cavaco caiu, logo, no ano seguinte). É engraçado como isto pouco mudou, mesmo depois de três décadas de coma.

Outras notícias do ano? Portugal foi ao Mundial de Futebol no México e os jogadores portaram-se muito mal em Saltillo (hoje, são mais comedidos). Na Eurovisão, Dora pedia: “Não sejas mau p’ra mim”. Mas, os outros países não falavam português e foram maus, deixando-a na última posição. E, fora de Portugal, um par de explosões famosas: Chernobyl e o Challenger.

Contudo, nenhum paralelo com o Portugal atual importaria a uma pessoa que acordasse agora, depois de 35 anos de coma. A sua primeira pergunta seria: “Por que estão todos com máscaras?” Ó meu amigo, nem vale a pena falar disso!

03/12/2021

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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