Um hotel de 1 a 5 estrelas num céu de pechisbeque ou a cidade evaporada

 Um hotel de 1 a 5 estrelas num céu de pechisbeque ou a cidade evaporada

(br.freepik.com)

No discurso das forças que disputam o espaço mediático – dantes a disputa era mais territorial,  presencial, de modo substantivo –, só se ouve falar de apoio às empresas, famílias, trabalhadores, povo – palavra elástica para amplo uso instrumental – pequenos proprietários, pobres, pessoas sem salário mínimo, pessoas que necessitam de mais salário médio, forças de segurança, os desgraçados dos professores, médicos, enfermeiros, bombeiros, advogados da ordem dos advogados e outros sem ordem nenhuma, proletários, camionistas, camonistas, especialistas, médicos de saúde pública, epidemiologistas, matemáticos, videntes, negacionistas, evidentistas, etc. O todo desaparece, a sociedade como conjunto esfuma-se. Os discursos apropriam-se do real para virtualizar melhor o que lhes convém ideologizar. A cada discurso um suposto destinatário, a classe média elástica, os tais trabalhadores, a direita, a esquerda, o mundo da agricultura, os pensionistas, tudo segmentado, país de retalhos sociais, como se os combates estabelecessem fronteiras mecânicas na determinação sociológica das condições e dinâmicas de mobilidade das relações de classe e no ajustar de novos desequilíbrios – a uns piora a vida, outros sobem nos rankings.

Para conquistar esse território virtual, de fronteiras que uns dizem móveis e outros fechadas – há clientelas fixas de forças partidárias, dizem, esquecendo que tudo muda e nessa mudança muda a posição e a dimensão relativa dos elementos em jogo –, cada entidade partidária, de rosto único, tem um discurso próprio, uma sintaxe, um vocabulário, vejamos, um estilo, mais neutro, mais tecnocrata, mais obreirista, mais killer, na roupa, certamente, no nó da gravata, na cor da gravata, nos folhos do colo, nos penteados, nas bases, na agressividade grosseira, na lucidez mais convicta, na subpolítica do esgrimir slogans. Tudo é legível e encaixado sistemicamente. É a rede em que todos se movem e em que todos se movem em marionetas dessa determinação de passar um conjunto de imagens/mensagens de que são reféns – cumprem papéis regulados dentro destas máquinas de produção de fotogramas por segundo –, instrumentos, agentes agidos de um esquema que os ultrapassa. Como se entrassem todos numa grande trituradora de produção de imagens que, batidas as tais “mensagens” – os anjos também as trazem –, a sua liofilização garantisse ao “consumidor de mensagens” o entendimento do que se montou em cadeia sintagmática: sabor a mais ou menos esquerda, sabor arrependido a social-democracia, sabor a extrema-direita grunha, sabor a tédio, sabor a vazio, como acontece quando se consomem sucedâneos, por originais que sejam.

Mohamed Hassan (Pixabay)

A boçalidade e a grosseria arruaceira convivem com o perfil tecnocrata e com a linguagem vazia, descomprometida, não se trata de abstracção mas de falsa neutralidade – sob os discursos, o texto substantivo é sempre outro, as análises também, o comentário imediato, forma de espartilhar ainda mais um regime de discurso panaceia em que quase todos, magicamente, assumem ter a solução para as diversas crises: pandémica, económica, escolar, laboral, empresarial, interior versus litoral, exportações, consumo, emprego, emigração, preço das rendas, electricidade, conversão verde, etc.

Oito reflexões e uma conclusão se podem retirar como lições desta forma publicitária, time is tele-money para os políticos em competição, tempo à farta para os comentadores (os moderadores, por vezes, também se candidatam ao voto, de tal modo intervêm) da ordem dos discursos, sinóptica, sloganizada, feita de chavões que se somam em frases que se repetem.

Que os discursantes falam para si mesmos, por conforto de se confirmarem no papel que desempenham, efeito espelho de re-identificação e para com os seus, que muitos chamam de fiéis – que se  movem, ao contrário do que é dito, numa medida que o tempo e os tempos determinam. Esta é uma função fática.

É também uma dimensão terapêutica, ânimo em sede subjectiva, ritual para afirmação de mesmismos “identitários”, e automaticamente de reconhecimento simétrico pelos “fãs”, técnica específica para câmara/ecrã em que um certo verismo de rosto “frente de casa” é relevante, penteado, base, nó da gravata, folhos, colo à vista, cores, mais as palavras, claro, ajustadas ao gosto específico e ao mínimo temporal, na impossibilidade óbvia de forjar pensamento. E caracterizadas por maior ou menor assertividade – a besta rosna sempre –, maior voo teórico, toque dominante ao gosto português, maior elegância e articulação, maior entendimento, maior embrulhada salivada, mais tropeçada, mais peixeirada. Por vezes, os “erros de imagem” – o “meio”(média) exige que o combate aí se faça – podem obcecar o “olho espectador” que “pouco ouve do que se diz”; e como todos metem nó de gravata – as interpretações pululam – na luta, ou folho ou colo, olhar o nó não é tão despiciendo quanto isso: não há trajes neutros, nem farda política segura; é curioso que ninguém vá de ténis e que, de algum modo, todos se assemelhem, apesar da qualidade diferente das marcas; no caso das mulheres, o que se nota é um andar entre a senhora e um estilo estudante. Também é determinante o controlo das expressões faciais: um esgar ou um sorriso fora de sítio traem tudo.

Monoar Rahman Rony (Pixabay)

Nestes debates de 25 minutos, é suposto que cada um tem doze minutos e meio, mas se o moderador usar três ou quatro minutos, o tempo de cada um desce para menos de dez, num registo rítmico tipo xadrez – o relógio talha o tempo em fatias subalimentares.

O mais parecido, na verdade, com este tempo espaço – o ecrã mata – é o boxe vale tudo, cujo pressuposto é o de que o vencedor procure um KO, quando o caso não é jogar o empate, ou o não debate, para poupar cargas para os embates reais – este é um campeonato de diversas divisões e de diversas formas de “pega”, umas frontais, outras em que a lógica é pegar pelo rabo, como diria o Picasso. Acontece, por vezes, que tudo acaba em chá das cinco, há momentos de júbilo ideológico em parelha.

Que as clientelas têm um papel determinante como objectivação do que se “discursa”, como se houvesse redis eleitorais em que os eleitores se mantivessem cercados, um absurdo – servem para tal as sociologias rápidas, que muito conformam via sondagens e arrastam comportamentos indecisos para o gesto imitante; as pessoas também seguem sondagens como bandeira-número, isso é real quanto aos que mudam de campo constantemente. Há quem vá, no voto, de ponta a extremo.

Na realidade, tudo se passa no ecrã, e quase nada, mesmo o presencial, existe, sem a sua amplificação televisiva. Até que outro paradigma venha, esta é a lei.

Nabil Saleh (Unsplash)

Resultado disto tudo: nada ou pouco se debate, tudo não passa de modos de gerir imagens-força na arena ecrã, a cada round. O objectivo dos pequenos é serem grandes e o dos grandes é serem maiores. Quando se trata de manter as posições, o que sobe desde logo; é que a queda está em processo.

Absurdo maior é que o tempo do comentário, exercido com voracidade jurada depois do circo concursivo – os comentadores estão perto dos júris dos concursos de canto e a isso se adaptam, com excepções, é claro –, compreende um tempo superior ao tempo do debate, convertendo o essencial, a suposta substância do debate, no que é logo pretextual, elementos extraídos do debate para ali, entre comendadores, serem objecto de observação supostamente clínica. Essa observação desce ao psicológico, ganhando contornos de psicanálise de pacotilha ao modo ecrã – nesse caso, os políticos acabam no divã, sem o saberem.

Conclusão: está tudo invertido, valores e técnicas, meios e fins. Neste uso impróprio da política, enquanto instância de troca de ideias e de projectos, os meios – o êxito de audiência de cada televisão a cada momento, os pormenores de estilo ou o estado de ânimo do debatedor –, transformam-se nos fins. Debate igual a confusão, obscurecer das coisas do real, acumulação entrópica das visões, descontrolo. Vence o medo de que isto se não resolva, política e pandemia de braço dado, resultado da desorientação que se espalha, da entropia ambiente que cresce.

Questão de fundo: e a cidade? A sociedade como um todo, que não apenas as partes desavindas e as tribos e etnias, regiões? Onde o discurso, mesmo sloganizado e telegramático, que não tenha apenas como destinatários corporações e fiéis, sectores? Quem desaparece nesta submissão da política às leis comerciais das televisões, tempo e formatos, é a democracia.

Quanto mais estamos longe de Abril, mais nos aproximamos de características totalitárias, sob forma mitigada, da sociedade que lhe era anterior. Esta fragmentação corporativa e sectorial do país faz dele, de facto, uma soma mal cosida de retalhos. Seremos o quê? Um hotel de todas as estrelas num céu de pechisbeque?

21/01/2022

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Fernando Mora Ramos

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