Um pequeno acidente cósmico

 Um pequeno acidente cósmico

Acácia vermelha, Ilhas Canárias (coleção pessoal)

Reuniram-se secretamente na cave do Mary’s Delicatessen, à volta de um chá e de um scone. A situação era séria. Os rumores cresciam e já não sabiam distinguir um sorriso espontâneo de um esgar malicioso. Desta vez Sophia e Martin evitaram dar as mãos por baixo da mesa e deram consigo a fitar obsessivamente a reprodução de Bacon na parede. Sentiam-se presos, como os retratados. Não conseguiam ainda perceber bem o que lhes tinha acontecido nas Canárias, primeiro em Tenerife e depois em Las Palmas, onde passaram uns dias à boleia de um congresso.

Martin era 17 anos mais velho e já usava um capachito feito da mesma cor dos pelos que lhe brotavam de lado. Cabelo a sério, viria de um meio-irmão perdido? De qualquer forma sentia-se orgulhoso. Mal se notava. Nunca ninguém lhe disse que se notava. Bom, definitivamente não se notava.

Créditos: Ralph Mayhew (Unsplash).

Mas Herman, o papagaio gigante do Parque, o seu cabeça-de-cartaz, pareceu notar. De uma só bicada levou-lhe o capachito, deixando-o nu e mudo. Quase ia caindo, como se tivesse apanhado um golpe. Ainda implorou, mas já tinha voado. As pessoas à volta, muitas, dividiam-se entre o piedoso e o sarcástico. Deixa lá meu, que já compras outro. O diabo do bicho. Precisa de alguma coisa? Sim, preciso. Sophia também congelou. Ponderou o telemóvel, mas que fazer com ele? Bom, sempre resolvi tudo com o telemóvel. Anda lá, pensa.

Quem pensou rápido foi a dúzia de pessoas mais próximas. Nem se deram conta da azáfama. Um loro com um capachito no bico. Um homem nu. Devem ter sido mais fotografados do que numa festa de anos. Ele e Sophia, ainda de luto mas de top e short. Daqueles esfiapados, a imitar jovens travessos.

Parece que o capachito foi apanhado por um chimpanzé, que o confundiu com uma boina. Digo isto porque circularam muitas fotos do bicho com a boina à banda, misturando os seus pelos negros e longos com o grisalho natural do meio-irmão. Gostava de chimpanzés, adorava mesmo, mas assim não. Parece que os 4% dos genes que os chimps têm, e os humanos não, foram todos para a brincadeira.

O pior foi à noite. Circularam centenas de fotos do loro, do chimp e, lamentavelmente, dele e de Sophia. As fotos passaram de mão em mão e foram replicadas pelos jornais online das ilhas, devendo ter atingido os milhares. Umas horas depois, já de madrugada, recebeu um whatsapp de um colega da ULPGC. És tu? De manhã as fotos saíram na primeira página de todo os pasquins locais. Fuck.

Ainda não tinha nascido o dia e já estavam em Las Palmas. As acácias vermelhas que se lixem, também deve haver na Gran Canaria. Esta acácia não é a árvore do Ténéré do Saara, pois aparece aos flocos e tem uma deslumbrante roupa vermelho-vivo. Gostava de levar uma comigo mas não há tempo.

Créditos: Elijah O’Donnell (Unsplash).

Quando chegaram ao aeroporto tinham repórteres à espera. Pensa que o loro é perigoso, que o Parque o deve prender? Os funcionários ajudaram? Bolas. Fugiram para o hotel e trancaram-se. Pensa. Travar os jornais? Convencer a Google? Passaram umas horas às voltas, em círculos fúteis. À tarde apareceram as primeiras fotos no La Razón e, um par de horas depois, no Sun e no Mirror. Quem lhe disse foi a Marian, que lhe ligou atónito. Quem é essa?

Fizeram o fim da tarde na praia, para se mimarem. Mas sentiu-se mal na água, a Sophia só sabia boiar e foi ajudado por um jovem que o levou para terra, lívido e com falta de ar. Reuniram-se dezenas de pessoas em curiosidade frenética. O círculo apertou-se. Please, let me breathe. A Sophia tentou ajudar, mas não tinha força. Pensaram que queria furar. O jovem, solícito, segurava-lhe a cabeça e oferecia-lhe água. Mais fotos. Fuck. Sophia em biquíni. O nadador-salvador trouxe o estojo de primeiros socorros. No need, thanks. Foram a custo para o hotel. No dia seguinte, de manhã, meteram-se no primeiro avião. Sonhavam com biquínis, shortstops e capachinhos, à mistura com nus, papagaios e chimps.

Matthias, o marido de Sophia, uns tantos anos mais velho e com ar grave, companheiro de profissão na escola médica, aproveitou para a tratar. Já há alguns meses que tinha notado uma grande mudança, mais errática, mais rebelde, mais desafiadora. Recentemente, pela primeira vez, pô-lo em causa numa questão médica. Não vês que… Tinha sido grave, mas passou. Ligou à família. A Sophia está doente e precisa de se tratar. Que sim. Que ele saberia o que fazer. Que eles nada podiam fazer. Que.

Pois sim, era agora. Querida, é por amor. É fraquinho, não faz mal. Vais ver que te sentes melhor. Que. Cedeu por ser fraquinho. Cedeu por cansaço.

Créditos: Ricardo Gomez Angel (Unsplash).

Semanas duras. Meteu baixa e quase não sabia onde estava. Mal compreendia as coisas mais simples. Caiu num estado de placidez bovina, que só ele parecia apreciar. Os amigos desapareceram. Não recebeu um telefonema durante semanas. Deixou de ir ao pub e a festas. Nem mesmo à party da Gracie, a mulher do Diretor. Ironicamente, o Matthias começou a ser convidado para jantares e happy hours. Até aí só tinha a companhia das cobaias no laboratório. Onde vais, Matthias?

O encontro no Mary’s, à volta de um chá e de um scone, salvou-a. Foi o primeiro em semanas. Martin apresentou-a a uma amiga, que a visitou regularmente. Decidiram que esta situação limite exigia um plano ousado, um flip-flop impossível.

Phoebe ajudou-a a reduzir o medicamento e levava-a a jardins, galerias e concertos. Começou a ver os vermelhos, os verdes e os amarelos. O cheiro também regressou. O primeiro sinal foi o cheiro a velho dos ingleses que não tomam banho durante a semana. O segundo foi o humor. Voltou a troçar dos banais understatements, que os ingleses usam por tudo e por nada para evitar desilusões e situações embaraçosas. The weather is not too bad, my dear. Well, it’s actually awful. Pensaram que ela estava pior.

Créditos: Alex Perez (Unsplash).

O plano envolvia um contato direto entre os dois homens, que já se conheciam do departamento. Foi acertado com o Martin e lentamente trabalhado com Matthias por Sophia, como se fizesse tricot. O argumento decisivo foi que ela já se sentia muito melhor e, acima de tudo, que era preciso diminuir a tensão no trabalho. A Phoebe esmerou-se.

O encontro foi um jantar a quatro, ela e Phoebe num dos lados e Mathias e Martin no outro. Decidiram que um dos hookers ajudaria o outro a fazer a marcação. O jogo foi iniciado com Bushmills 21 e o melhor Cheshire, prolongado com Château Pauillac e terminado com Toffee Pudding da avó.

Fazia sol e uma temperatura amena. A cottage era um paraíso, com ramadas de vinha e ovelhas brancas. A conversa foi leve, saborosa e doce. Os aromas lavavam a alma. Os sabores limpavam o fel. Os homens dispuseram-se a ser magnânimos.     

Mathias e Martin descobriram o passado, a família e amigos comuns. Falaram sobre ciência, râguebi e música. Descobriram que ambos gostavam do mar, de pintura e de flores. Continuaram a beber Pauillac durante horas.

Descobriram que Sophia foi a melhor coisa que lhes poderia ter acontecido a ambos. Perceberam, também, que não a mereciam inteiramente.

Perceberam que há subtilezas e equívocos que ninguém, nem mesmo Deus, controla.

Que ninguém tem o direito a prender alguém, que a alma é livre.

Que o pecado não é pecado e ninguém tem direito a ser padre.

Que o mundo, afinal, é muito melhor do que pensavam.

Que a família e os amigos são o cimento do mundo.

Que é melhor caminhar no mar do que em terra.

Que as flores cheiram bem e o Pauillac melhor.

Que a pesquisa é a cocaína da mente.

Que um Matisse é intraduzível.

Que L. Cohen continua cá.

Que Messiaen nos toca.

Que Vivaldi é Deus.

Que o amor é.

Que sim.

Que.

Matthias e Martin continuaram a falar e a beber durante muito, muito tempo. As mulheres levantaram-se e foram à vida, mas eles ficaram.

Créditos: Hauke Irrgang (Unsplash).

Passaram-se os dias e ninguém os viu mais no trabalho. Não consta que alguém levasse comida à quinta, ou que alguém trouxesse de lá as sobras.

Os visitantes evitavam a quinta e passavam de largo. Alguém disse, no entanto, que avistou um chimpanzé a entrar com um papagaio no dorso, segurando um objeto com pelos.

Quando saíram já não o levavam. Pareceu-lhe que um dos animais tratava o outro por Herman.

Reza a tradição que a lareira da quinta ainda fumega e que se ouvem conversas abafadas.

Isto, no entanto, não está escrito em qualquer ata do município.

Pode contactar o autor do texto, através do e-mail: pratas-young@theyeofhorus.net.

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José Pratas-Young

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